sexta-feira, outubro 28, 2005

Entre duas pontes


-- Dizem que tens séculos, anos sem fim, perdidos na medieva idade,
mas continuas de pé, vertical,

como velhinha jovem,

olhando quem passa,

opulento ou na desgraça,

condição de qualquer homem,

contingência de todo o mortal.

E aí estás tu, serena, pacífica, vetusta, desafiando a eternidade.

-- Fica tu sabendo, jovem menina, irmã de betão,
quem conta não são os anos,

mas antes o carinho, a ternura, a dedicação,

que nos tributam os humanos.

Se não olharem para ti, depressa sobrevirá a decrepitude do teu rosto;

como um ai passam várias gerações,

os teus olhais deformar-se-ão sob a vibração de máquinas velozes,

debaixo dos ciclópicos camiões,

ao sabor da chuva e da ventania,

e tu, imponente, altiva,

verás como essas gerações envelhecem, inesteticamente, sem gosto,

filhas do vento e de uma diva,

que, em tempos diferentes, as pariu, algures, na planície ou na serrania.

-- Confesso que por mim já passaram as mais paradoxais vivências,
desde interesses desalmados,

desejos amordaçados,

paixões incontidas,

até ao inesperado fim de tantas e tantas vidas.

Que velocíssimo mundo é este, que ceifa a existência nos verdes anos,

se até os animais se defendem e não são capazes os humanos?

Progresso, retrocesso, felicidade e amargura,

tudo por mim passa,

mas não sei se aguentarei, aos olhos desta heterogeneidade radical,

a inversão dos valores que tu viveste, esta tão consciente loucura!

-- Na minha ancestralidade, testemunhei o inaudito,
desde gente desesperada,
com fome, peste, sedenta e cansada,
ao pedinte, ao rico, ao ladrão maldito.

Sobre mim deixaram o rasto da miséria e da injúria,

a ambição de melhores dias,

no prazer ou nas alegrias,

no advento de uma era nova, talvez longínqua, mas ufana.

Por isso, eu medieva, tu da década de oitenta, ao sabor da política e da incúria,

de uma coisa estamos cientes, entre as encostas do Sabor afundadas,

por entre as ambiguidades do ser e os queixumes de um ter em lamúria:

afinal envelhecemos, morremos,

até contentes, mas desoladas,

para que vivam eternamente as mortais esperanças da grei humana!


ChFer (2001). Entre Vertigens e Amores.